Corte nos salários de servidores: quando a imoralidade supera a legalidade

Foto: Divulgalção
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Apesar de estar com os cofres cheios, governo municipal reduz salários de servidores efetivos, mas mantém super salários de apadrinhados. Câmara altamente alinhada beira a subserviência e aprova tudo sem questionar

Por Patrick Guimarães

“Cortar salários dessa forma, inclusive de aposentados, é legal, mas imoral”, diz um servidor da prefeitura de São Gonçalo, que prefere não se identificar por medo de sofrer represálias do governo.

Sob o título “São Gonçalo corta super salários e garante reajuste do piso a servidores”, a prefeitura de São Gonçalo fez publicidade no início de dezembro de 2022 sobre uma mensagem (14/2022) enviada à Câmara Municipal de Vereadores, com o objetivo de alterar o regime jurídico dos servidores públicos do município, das autarquias e das fundações públicas municipais, instituindo novo Estatuto dos Servidores. Aprovada e sancionada pelo prefeito, a medida cortou até 75% de alguns salários, incluindo aposentados. Na contramão à proposta de austeridade, o governo cortou de ativos e inativos, contudo, mantém altos vencimentos em seu primeiro escalão e falta com a transparência sobre os cargos contratados sem nomeação, os RPAs.

A proposta enviada pelo governo municipal à Câmara de Vereadores de São Gonçalo foi votada e aprovada em dezembro do ano passado, com 22 votos favoráveis, três contrários e duas abstenções.   

Com o “pacote da maldade” (expressão usada entre servidores e representantes de classes trabalhistas) valendo a partir de janeiro desse ano, o impacto veio agora, no início de fevereiro, quando os vencimentos começaram a cair nas contas dos servidores.

‘Uma covardia’

Alguns servidores vêm expondo seus casos nas redes sociais. Teve servidor aposentado que perdeu em torno de 75% do salário com a nova lei criada pelo prefeito Capitão Nelson (PL).

Servidor do município durante 53 anos, aposentado há sete pelo Legislativo gonçalense, o ex-vereador (três mandatos) Gessy Costa, 77, tomou um susto e passou mal quando viu o salário de janeiro em sua conta corrente: R$ 119,00.

Mesmo tendo contraído alguns empréstimos, que são descontados direto na folha de pagamento, o servidor aposentado recebia R$ 4.770,00. Esse era o esperado, mas entrou meros R$ 119,00.

Sem condições de agir em uma situação na qual até dezembro do ano passado ele sequer imaginava que uma coisa dessas poderia acontecer, Gessy conta com o apoio ferrenho do filho André Costa.

André Costa e o pai, Gessy, que teve 2/3 do salário cortado

“Imagina você está vivendo, às vezes com algumas dificuldades, sim, mas com a vida estabilizada, e de repente cortam mais de 2/3 do seu salário. Além das contas básicas da casa, e no caso do meu pai também incluem medicamentos e plano de saúde, por exemplo, as pessoas têm outros compromissos. De repente você perde o poder de honrar suas dívidas, perde sua dignidade, em questão de dois meses. Absurdo, desumano e imoral. Uma covardia essa ação do prefeito Capitão Nelson”, reclama André.

Gessy é hipertenso, Diabético, tem problemas cardiológicos e também sofre de psoríase nervosa. “Meu pai está de cama, em depressão profunda. Tiraram todos os benefícios do salário dele, um senhor de quase 80 anos. Meu pai vive de aluguel e anda em um carro ano 2003. Levava uma vida simples, mas tranquila. Agora a tranquilidade acabou”, lamenta o filho que trava batalha para uma revisão das medidas adotadas pela prefeitura.

“Vou trás dos direitos do meu pai até o final. Se tiver que morrer eu morro para resolver isso para ele. Com tudo o que está acontecendo, meu pai e diversos outros funcionários, principalmente os aposentados, foram condenados à morte pelo prefeito de São Gonçalo, Capitão Nelson”, afirma André Costa.

André Costa tem lutado para que situação do pai seja analisada e resolvida

A reportagem vem recebendo relatos de servidores passando mal, sem dinheiro para comprar medicamentos e até comida. Para os mais desconfiados, uma teoria do caos. Com a desoneração da folha de pagamento, ao reduzir o gasto com efetivos, sobra mais para pagamentos a comissionados e por meio de Recibo de Pagamento Autônomo (RPA).

Prefeitura: perguntas sem respostas

A equipe de reportagem perguntou à Prefeitura de São Gonçalo, através da Secretaria de Comunicação Social, se com a desoneração da folha de pagamento, a prefeitura deixará de contratar por comissão (cargos de confiança / RPA).

Também foram questionados em quanto resultou a desoneração da folha por mês e qual o impacto percentual nas receitas do município? Além de quantos servidores não efetivos / comissionados a prefeitura possui atualmente, e se houve corte nesses salários?

A reportagem também quis saber sobre contracheques de dois servidores com vencimentos acima dos tetos salariais municipal (prefeito) e até estadual (desembargadores). Um é de um auditor da receita municipal, subsecretário, de novembro de 2022, no valor de R$ 55.463,68. O outro é de um secretário, fiscal de posturas, de dezembro de 2022, na quantia de R$ 26.045,57. Foi perguntado à prefeitura se esses salários também foram reduzidos?

Após o envio de duas mensagens por e-mail à Comunicação do governo municipal, a prefeitura não prestou nenhuma declaração, simplesmente ignorou os questionamentos da reportagem e a oportunidade de apresentar seu posicionamento.  

Capitão Nelson e equipe do governo preferem ignorar o problema

O que diz o sindicato dos servidores

O Sindicado dos Servidores Públicos Efetivos de São Gonçalo (Sindspef) alega não ter conhecimento real sobre a situação dos funcionários perante aos cortes devido às informações não constarem no Portal da Transparência da prefeitura.

“Não temos dados exatos sobre quem sofreu perda ou ganhou. Quais foram as secretarias e cargos mais afetados; quanto cada servidor perdeu; quais seus salários, por exemplo”, explica Ewerton Luiz, presidente do Sindspef.  

Segundo Ewerton, “o posicionamento do sindicato é contrário às medidas instituídas pelo texto enviado à Câmara pelo prefeito, principalmente por não ter ocorrido debates com os servidores. A prefeitura formulou o texto e não ouviu ninguém, apesar dos impactos que viria a gerar. Não formou nem conselho administrativo. Existem erros de enquadramento e de cálculo e o Sindspef vem atuando individualmente conforme as demandas vão chegando. A falta de informações disponíveis no Portal da Transparência atrapalha”, avalia.

Na última assembleia geral realizada para tratar sobre o assunto, na sede do sindicato, ficou acordado que as decisões inconstitucionais tomadas pela prefeitura e a redução salarial serão questionadas na Justiça.

Na porta da prefeitura, outro servidor se desespera Reprodução: Redes Sociais

Deputado questiona os cortes

O deputado federal Dimas Gadelha (PT) criticou duramente o novo Estatuto do Servidores, destacando que “a cidade está com os cofres cheios”.

“Os servidores concursados, aqueles que não têm vínculo com padrinhos políticos, foram duramente golpeados com cortes de mais da metade dos seus salários. Imagina isso, um absurdo completo! São pessoas que servem à cidade e aos seus moradores, em diversos setores, sendo tratados dessa forma. Pior ainda é isso acontecer quando a cidade está com os cofres cheios, após recebimento de verbas que vieram da venda da Cedae e royalties de petróleo. Cerca de um bilhão, quase o orçamento anual da cidade. Falta recurso para quem trabalha para o povo, mas sobra para corrupção e negociatas, como temos acompanhado pela imprensa. Estou em cima e não vou deixar sucatear os serviços públicos na cidade”, afirma Dimas. “Também reduziram o salário do prefeito, dos vereadores, dos secretários e dos apadrinhados políticos?”, questiona o deputado.

Câmara finge que o assunto não existe

Apesar de serem ações legais juridicamente, a imoralidade soa mais alto em todo o contexto da situação. Surgem ainda indícios de manipulação para o esquecimento e a não disseminação do problema em grande escala.

Mesmo com a alta relevância do tema, a reportagem teve dificuldades para encontrar publicidade sobre o assunto na web. No site da Câmara de Vereadores de São Gonçalo, por exemplo, nenhuma notícia sobre o assunto.

Entretanto, notícias sobre regimes próprios de novos cargos e salários considerados positivos ganharam exposição em vários sites, como os da Funasg, Educação, Saúde e Guarda Municipal.

Questionada, por meio de nota, a câmara afirmou que “a aprovação do novo Estatuto dos Servidores Públicos, que alterou o regime jurídico dos servidores públicos da administração direta e das autarquias e fundações foi divulgado no nosso site e nas nossas redes sociais”.

No entanto, nenhuma publicidade sobre o assunto foi veiculada, nem pela prefeitura e nem pela câmara após a aprovação. Informações e notícias sobre o processo nº 4368/2022 (arquivado), aberto na câmara para tramitar a mensagem nº 14/2022 do prefeito Capitão Nelson, não são encontradas em nenhum veículo de comunicação. A lista com os nomes dos vereadores e seus respectivos votos, por exemplo.

Somente o documento original da mensagem enviada pelo prefeito à câmara é encontrado em um link (Pautas e Atas) no site do legislativo gonçalense. Mas não é fácil de encontrar.

O documento completo pode ser conferido em https://sg.processolegislativo.com.br/areapublica/documento/?Processo/4368_2022

No vídeo da sessão plenária do dia 13/12/22, aos 22 minutos e 6 segundos, o presidente da casa, vereador Lecinho (MDB), faz a chamada para a votação, em caráter de urgência, das mensagens do governo, entre elas a 14/2022.

Na primeira quinzena de dezembro de 2022, a Câmara de Vereadores de São Gonçalo confirmou a um jornal da região ter recebido duas mensagens do prefeito Capitão Nelson sobre a redução de salários dos servidores. Era a 14/2022.

No entanto, o legislativo gonçalense afirmou que as novas medidas iriam impactar somente o servidor que “estiver em licença-prêmio ou em caso de doença”.  Uma resposta vaga, aparentemente com o intuito de tranquilizar os servidores, mas sobretudo mentirosa.

Na sessão do dia 13 de dezembro, votaram contra, os vereadores Romario Régis (PDT), Prof. Josemar (PSOL) e Priscilla Canedo (PT). Glauber Poubel (PROS) e Jalmir Junior (PRTB) abstiveram seus votos.

A reportagem do jornal O Contexto perguntou se o presidente da Câmara Municipal de São Gonçalo, o vereador Lecinho (MDB), está acompanhando os reflexos da nova lei na vida dos servidores atingidos pelo corte em seus salários, quais são os pontos positivos e os negativos da nova lei. Porém, o presidente do Poder Legislativo gonçalense não quis se pronunciar até o fechamento desta edição.

Presidente da Câmara, vereador Lecinho preferiu não se pronunciar Reprodução: Youtube

Pelo simples fato de não ter havido discussões com as classes trabalhistas e o prefeito Capitão Nelson ter enviado o texto à Câmara sem se importar com possíveis injustiças nos vencimentos, somando isso à aprovação de 22 dos 27 vereadores, o governo reafirmou sua hegemonia entre os vereadores da cidade, indicando parcialidade nos votos e descaso com os servidores municipais.

Atualmente, a maioria dos parlamentares compõem a base governista e se limitam a acompanhar obras e ações de manutenção em seus redutos eleitorais nos bairros da cidade.

Servidores da Educação, Saúde, Guarda Municipal e Funasg não sofreram impacto com o texto nº 14/2022 do Executivo, devido a terem sido contemplados com planos específicos de cargos e salários.

Trecho da mensagem 14/2022 – No Título IX, Capítulo Único – Das Disposições Transitórias e Finais, o Art. 306 afirma que “ficam submetidos ao regime jurídico instituído por esta Lei os servidores do Poder Executivo Municipal, incluindo as autarquias e fundações, incluindo o Poder Legislativo.

O texto aprovado e sancionado pelo prefeito Capitão Nelson revogou as leis nº 050, de 2 de dezembro de 1991; nº 327, de 14 de janeiro de 2011; nº 1.220, de 19 de fevereiro de 2021; e a de nº 1.226, de 8 de abril de 2021, assim como bem como todas as disposições em contrário constantes nas legislações municipais. (Art. 308 – Capítulo Final).

O espaço está aberto para a prefeitura e Câmara de Vereadores. Caso haja repostas, o texto será atualizado.

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